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Fiés LGBTQIA+ encontram espaço para fé em igrejas inclusivas

Pessoas de identificações minoritárias têm oportunidade de se sentirem acolhidos para praticar a fé cristã dentro de templos em Goiás 

Os coros de “Aleluia” e “Graças a Deus” proclamados pelos fiéis se misturam aos louvores cantados nos templos e reforçam a entrega cristã diante da pregação pentecostal. Baseadas na passagem do texto bíblico, Romanos 2:11, em que diz que Deus não faz acepção de pessoas, as igrejas inclusivas em Goiânia reafirmam um cristianismo no qual Jesus caminha ao lado das minorias.

Assim, a população LGBTQIA+ inserida nos 84% dos brasileiros que se declaram cristãos, segundo o DataFolha, recebem livre acesso aos templos inclusivos. Todos os domingos às 19h as luzes da igreja Comunidade Cristã Renascer (CCR), no Setor Aeroporto, acendem com o intuito de abençoar os adeptos para uma nova semana. Acostumada com a vivência evangélica desde sempre, a pastora Mônica Ferreira Souza, formada em Teologia, fundou o espaço em 2016 com a premissa de receber todos os públicos sem distinção.

Ao redor dos assentos, pessoas com deficiência, racializadas, vulneráveis, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e demais identificações minoritárias encontram um local sem preconceitos para ter o contato com Deus, através da CCR. De acordo com o último Censo IBGE que realizou um levantamento de dados da religiosidade, em 2010, Goiânia possuía cerca de 500 mil evangélicos. Na última década, a pastora acredita que esse número tenha crescido expressivamente. Por esse motivo, é importante proporcionar o acolhimento.

“Busquei a faculdade de teologia era justamente para compreender se realmente a Biblia condenava e quando a gente estuda o texto sem tirar do contexto, nenhum condena a homossexualidade, eu acredito que uma forma que a igreja tradicional tem de condenar na palavra do homem, não de Deus”, explica Mônica. Para a religiosa, seguir o cristianismo enquanto LGBTQIA+ e se assumir verdadeiramente para si, é se permitir ter a oportunidade de servir a Deus de forma plena e honesta, sem usar máscaras para se encaixar, já que essa ação pode, na verdade, distrair do principal, segundo ela: o amor de Cristo.

Os louvores cantados são os mesmos da maioria dos cultos Goiânia afora, com Jesus ao centro. As unhas das mãos do cantor estão cobertas por um esmalte preto. A pregação passa pelo aconselhamento divino para melhorar as experiências mundanas dos fiéis. Os braços de quem adora aos céus possuem uma ou outra tatuagem. Piercings não são proibidos.

Algumas restrições de vestimentas são classificadas como banais, mas a pastora chama atenção para o pudor que cada fiel desenvolve a partir da relação individual com Cristo. A igreja sugere que se conheça as pessoas antes de iniciar relacionamentos e que a energia espiritual não seja desperdiçada. A maneira como a pessoa vai se dirigir à Deus - em relação ao gênero - não é relevante.

Pouco mais de três quilômetros da CCR, outro templo, ministrado por um casal gay de pastores, também recebe a diversidade. É no Setor Central que a Ekklésia realiza os cultos, também aos domingos às 19h. Mestre em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e especialista em Teologia, o pastor fundador Fagner Brandão conheceu as igrejas inclusivas aos 25 anos após ser impedido de participar das igrejas evangélicas, por conta da orientação sexual. Por quase 8 anos ele pastoreou na extinta Igreja Athos & Vida/Caminho da Inclusão. Ele e o esposo, procurados por grupos de pessoas e famílias que estavam “desinstitucionalizados” decidiram abrir a Ekklésia

“Lutei contra minha orientação sexual praticando todas as possíveis alternativas apresentadas pela igreja evangélica conservadora, tais como: terapias, psicólogos, cura interior, campanhas de libertação e descarrego, jejuns de vários dias, quebras de maldições, exorcismos, grupos de ‘ex-gays’ evangélicos, até mesmo me casar com uma mulher.”

O preconceito escalado pela violência é um cenário temido pela pastora Mônica, que já recebeu em sua unidade uma carta escrita a mão de quatro páginas com comentários distantes do amor ao próximo. Para ela, a escalada de intolerância nas igrejas, com influências externas, demonstram uma perda de foco de alguns templos - que estão mais dispostos a disseminar a exclusão. Frequentadora da Parada Gay, assim como a Ekklésia, a pastora pede, também, que a própria comunidade LGBTQIA+ vejam as igrejas inclusivas como aliadas, pelo fato de muitos ainda acreditarem que todos os fiéis são iguais e buscam a condenação alheia.

As unidades são mantidas por dízimos e doações. Sem salários aos funcionários, a equipe é formada por voluntários, que se encontram nas igrejas inclusivas e permaneceram para prosperar o acesso à outras pessoas que estejam na mesma busca.

“Deus quis que eu fosse assim”

Foi de mãos dadas com a esposa que a assistente administrativa Lídia Pereira Nascimento, de 36 anos, decidiu frequentar a igreja inclusiva Comunidade Cristã Renascer. O mesmo local em que se casou, sem a presença da família, que não aceita o casamento.

Não-binaria e lésbica, Lídia relembra que o período de aceitação da sexualidade não foi simples. “Tentei não ser, orei, jejuei, tentei me relacionar com homens, quase noivei e, inclusive, esse meu quase noivo também se assumiu homossexual”, comentou.

A agonia de pensar estar pecando impediu que Lídia desenvolvesse relacionamentos por um tempo.
Seria mais fácil ser mãe, esposa de pastor, dona de casa, mas não foi assim que Deus me fez. Ele quis que eu fosse assim e tudo o que Ele faz é certo, é lindo, é perfeito e tem um propósito”, reforça.

Casada com uma também egressa de uma igreja conservadora, Lídia explica que o Espírito Santo as tocou para o retorno. "Estávamos bastante incomodadas por não estarmos servindo, frequentando, trabalhando no reino e afastadas, paradas, o incômodo era muito grande, tanto pra ela quanto pra mim”, aponta. “Por muito tempo eu não conseguia enxergar as duas coisas juntas: ser LGBTQIA+ e ser cristã, hoje eu entendo que uma coisa necessariamente une a outra na minha vida, Deus me planejou desse jeitinho.”

Retorno após período afastados

A percepção de um relacionamento com a fé inspirado no amor de Deus é o que os religiosos Lucas Gois e Maria Dandara defendem veemente desde que encontraram o caminho de volta ao templo cristão. Aos 15 anos, o representante comercial Lucas, que hoje possui 22, se assumiu gay e por receio da pressão advinda dos meios religiosos, optou pelo afastamento.

O rapaz chegou a experimentar religiões de matrizes africanas após três anos distante dos templos, como o Candomblé e a Umbanda, mas ao perceber que se identificava mais com a fala cristã, buscou pela igreja inclusiva virtualmente. “Sempre me senti culpado pela percepção que as pessoas têm sobre mim, ainda estou no processo de desenvolvimento da minha fé, cresci muito desde o começo aqui na Igreja Inclusiva, tenho fé por amor àquele que na cruz morreu por mim para que eu seja livre.”, relata o jovem.

Já Maria Dandara relembra que Deus a chamou de volta para os templos após assistir o filme “A Cabana”, em que a figura divina é uma mulher negra. Durante o período de transição de gênero, ela se perguntava os motivos pelos quais Deus teria a “amaldiçoado”, como algumas igrejas apontavam. “Sentia muita culpa e raiva, porque eu questionava muito porque Ele me criou, eu tinha todos os tipos de sentimentos possíveis”. Desde mais nova, Maria sabia que vivia uma realidade que não lhe pertencia.

“Não me identificava com as coisas de meninos, eu olhava para o espelho e via que faltava algo em mim, viver quem eu era de verdade e quando comecei a ser de maneira feminina foi uma coisa tão libertadora”, conta. A liberdade de ser se uniu a de crer. “Deus não é um relacionamento abusivo, é amor verdadeiro, de paz, de espiritualidade”, garante.

A exclusão social da fé de indivíduos que possuem identificações divergentes ao defendido historicamente por igrejas conservadoras é o contrário da essência do que foi difundido por Jesus Cristo, afirma Flávio Munhoz Sofiati, sociólogo e professor da Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás (UFG).

O especialista enfatiza que os impactos da exclusão social da comunidade LGBTQIA+ das igrejas tradicionalistas é negativo por refletir um comportamento da sociedade em relação a esse grupo social. “Como a fé cristã é respeitada pela maioria da população, a exclusão pode significar a legitimação de posturas violentas”, explica.“O espaço público deve conviver com o plural, pois a sociedade concretamente é diversificada, não é papel da religião impor seus dogmas para a sociedade como um todo em formas de leis nas casas legislativas municipais, estaduais e no Congresso Nacional”, conclui.

Processo de inclusão começou nos anos 60

A doutora em Ciências da Religião pela PUC-GO, Miriam Laboissiere de Carvalho Ferreira, relembra que o processo de institucionalização e legitimação da primeira Igreja Inclusiva e consequentemente da Teologia Inclusiva iniciou em 1968, nos Estados Unidos (EUA). Foi a partir da iniciativa particular de um ex-pastor batista, de nome Troy Perry, o qual foi expulso da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana, a FUICM, em que atuava na época, por ser homossexual.

O Reverendo Troy iniciou a primeira Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) inclusiva na cidade de Los Angeles, em 1968 com apenas 12 congregados. Hoje a ICM tem mais de 60.000 membros e mais de 300 igrejas de 22 países ao redor do mundo. A ICM Brasil relata que durante o período que a instituição existe em todo mundo, 22 foram devastadas por incêndios criminosos.

Neste meio tempo, o cristão fundador atuou na Comissão de Direitos Humanos do Condado de Los Angeles, foi convidado pelo então presidente Jimmy Carter para a discussão sobre direitos homossexuais na Casa Branca em 1977, e foi hóspede do ex-presidente Bill Clinton em 1997 na Conferência sobre Crimes de Ódio da Casa Branca.

No Brasil, foi convidado para discutir o Programa Nacional Por Um Brasil Sem Homofobia, em 2003, mesmo ano de fundação da primeira ICM no País, na cidade de Rio de Janeiro. Hoje a ICM Brasil é o quarto país com maior número de clérigos atrás apenas dos EUA, Inglaterra e Austrália. O início das igrejas inclusivas nacionalmente, porém, se deu a partir da década de 1990. Com o aparecimento de grupos religiosos constituídos sob a bandeira LGBTQIA+.

Miriam contextualiza que apesar das igrejas conservadoras enxergarem a homossexualidade como uma espécie abominação, para a igreja inclusiva, a Palavra de Deus os liberta. “Eles tomam posse desta Palavra em suas vidas com uma leitura que os liberta de uma leitura fundamentalista, literalista, historicamente descontextualizada”, diz. Nesta Palavra, segundo ela, é buscado um respaldo para legitimarem a sua crença, igreja, templo, espaço sagrado o qual podem adorar, louvar e servir ao Senhor.

“A homoafetividade é tratada com rigor exagerado”

Quais são os impactos da exclusão teológica de pessoas LGBTQIA+ que possuem a fé questionada por parte das igrejas “tradicionais”?

O cenário religioso evangélico no Brasil possui em seu discurso uma defesa da heteronormatividade, classificando como perverso e diabólico o que não se enquadra nela. O quadro geral dos evangélicos (históricos, pentecostais clássicos e neopentecostais) apesar de uma série de divergências teológicas, doutrinárias e litúrgica, quando o assunto é LGBTQIA+ são unânimes em não aceitar a permanência, embora participem das confraternizações, cultos e outros eventos, não são aceitos para fazerem parte do corpo de governo, da organização litúrgica e estabelecer um engajamento que indique pertencimento àquela determinada comunidade.

A homoafetividade é tratada com rigor exagerado se comparado a outras realidades e situações dentro do meio evangélico. Isso sugere uma espécie de “eleição” de um mal, como se tal coisa fosse a culpa da falta de ordem e até mesmo sendo associada a causa do HIV. A doutrina evangélica faz questão de enfatizar valores que estão associados aos padrões hétero. Esse posicionamento de valorização hétero é herdado do catolicismo. Defender a heteronormatividade passou a ser sagrado com direito a “combater” militando, privando-os ou ignorando-os no que se refere a sua experiência religiosa.

O que o estudo da bíblia realmente apresenta sobre a população LGBTQIA+? Por que existem interpretações divergentes de determinadas passagens?

A interpretação bíblica divergente relacionada aos assuntos bíblicos sempre vão existir por questões de cultura, credo denominacional e teologia adotada pela instituição religiosa, cada um com sua verdade parece ser um presente da pós-modernidade. Alguns poucos textos são utilizados no Antigo Testamento para fundamentar diretamente contra a homossexualidade e transexualidade. Dentre eles temos Levíticos capítulo 18 versículo 22 e capítulo 20 versículo 13; Gênesis capítulo 19 e Juízes capítulo 19. Já no Novo Testamento, o texto de Marcos capítulo 10 versículo 6 até 9 é sugerido que Jesus manteve o modelo heterossexual de criação, Romanos 1 é um dos textos utilizados fundamentando a interpretação contra LGBTQIA+. O Cristianismo fundamenta sua defesa em tais passagens realizadas sua interpretação até os limites denominacionais.

Quais religiões cristãs teriam mais abertura para essa inclusão? E fora da esfera cristã, você sabe me dizer o nível de abertura de outras religiões?

No Brasil a inclusão é recente. Elas surgem a partir de egressos de igrejas cristãs tradicionais, pois tais igrejas consideram que qualquer identidade sexual que possivelmente foge ao padrão heterossexual e binário como perversão, impondo ao indivíduo a heteronormatividade. Me parece que as religiões de matrizes africanas são mais abertas no acolhimento e aceitação para LGBTQIA+, mas o que precisa ser observado é quando a pessoa permanece se identificando com Cristianismo e não sendo aceito pela denominação de origem eles fundam ou procuram uma igreja cristã inclusiva, é bom destacar que para os evangélicos, tais igrejas e tais fiéis não são considerados do seguimento evangélico.

No ponto de vista teológico, a criação e aumento de igrejas inclusivas na cidade demonstra uma necessidade de uma possível nova reforma protestante? Não deveriam todas as Igrejas serem inclusivas?

É interessante esclarecer o que indica uma igreja inclusiva. O termo inclusivo é utilizado com finalidade de compatibilizar as sexualidades não heterossexuais e religiosidades cristãs, o termo ainda sinaliza que as chamadas igrejas inclusivas possuem hermenêutica e teologia próprias, pois atende as necessidades do público que a frequenta. A ideia da inclusão utilizada pelas chamadas igrejas inclusivas se refere a aceitação das diversas formas de amor dentro da diversidade sexual. O termo inclusivo torna-se importante para LGBTQIA+ por não se tratar apenas de um espaço para expressão religiosa, mas de uma afirmação de identidade, na conquista pela luta dos direitos de expressão e liberdade religiosa. Neste sentido, sem olhar para os aspectos teológicos as igrejas inclusivas contribuem para a dignidade humana.

Uma nova reforma protestante no Brasil ainda é um assunto muito distante, o que ocorre é um processo de secularização e nesse processo o Cristianismo resiste adaptando-se nas diversas vertentes, tornando a religiosidade ainda mais complexa. O que na realidade precisava de haver uma mudança é a cultura da violência, uma vez que o surgimento de tais igrejas está ligado ao cenário de violência frequente das igrejas inclusivas, começando de seus fundadores são marcados pela violência, pois a realidade homoafetiva no Brasil está relacionada à violência ainda na infância e posteriormente nos locais de convívio como escola e igreja, ou seja, durante as relações sociais. (Foto: Diomício Gomes)