Hospital fez 48 abortos legais em Goiás
Unidade é referência no estado para casos em que a interrupção da gravidez é autorizada legalmente. Maioria das gestações ocorreu após o crime de estupro
O caso de uma menina de 11 anos, que passou pelo procedimento de interrupção de gravidez em Santa Catarina, mobilizou a opinião pública, especialmente nas redes sociais, desde que foi revelado na última segunda-feira (20). Em Goiás, o Hospital Estadual da Mulher (Hemu) realizou 48 abortos legais desde o início de 2021, 40 deles decorrentes de violência sexual. Em Goiânia, 7 cirurgias foram feitas no mesmo período, conforme a Secretaria Municipal de Saúde (SMS). O ato legal da interrupção de gravidez, previsto pela legislação brasileira desde a década de 1940, deve ser realizado na rede pública de saúde.
A história da menina de Santa Catarina foi relevada pelo portal The Intercept Brasil. Estuprada aos 10 anos de idade, e agora com 11, ela teria sido induzida pela juíza Joana Ribeiro, a quem caberia dar a autorização para o aborto legal, a manter a gravidez, segundo a reportagem.
O Ministério Público Federal (MPF) confirmou, nesta quinta-feira (23) que o procedimento foi realizado no Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A prática é permitida, segundo a legislação, em casos de gravidez resultante de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal. O tempo gestacional não entra em consideração, sendo assim, a norma técnica do Ministério da Saúde que estabelece o prazo de 20 a 22 semanas se torna apenas uma recomendação. No entanto, é necessário, por lei, um procedimento cauteloso para a gestação que ultrapassou esse período.
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Em Goiás, a coordenadora do Hemu e médica especialista em adolescentes da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás (SES/GO), Marce Divina de Paula Costa, explica que as etapas de encaminhamento se dão a partir da procura pelo hospital, “seja por livre demanda ou encaminhada”.
A mulher que dá entrada pelo pronto socorro é levada para o Ambulatório de Apoio à Vítima de Violência Sexual, onde é atendida por uma equipe composta de assistente social, enfermeira, ginecologista e psicóloga. A partir disso, ela preenche o protocolo previsto na portaria 2.561/20, do Ministério da Saúde, que deve ser assinado e aprovado por no mínimo três profissionais da equipe e pelo diretor técnico do hospital.
Depois, é comunicada a aprovação à paciente e assinado o termo de consentimento. Em seguida, são feitos os protocolos para internação. Marce diz que em Goiânia a autorização ocorre em cerca de 48 horas.
Acompanhamento
No caso de estupro, não é necessário comprovar a violência, valendo somente a palavra da mulher. Assim, vítimas que querem interromper a gravidez têm o direito de fazer a cirurgia pelo SUS, independentemente de registro de ocorrência. É o que explicam a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/GO, Fabíola Ariadne Rodrigues Oliveira, e a advogada especialista nos direitos da mulher Ana Carolina Fleury.
A presença da advogada em casos que não estejam em trâmite no Judiciário não é obrigatória, mas evita muitas violações de direitos, explicam as especialistas. A Defensoria Pública de Goiás (DPE-GO), por sua vez, fornece atendimento nos casos de adolescentes e crianças que engravidaram em virtude de violência sexual.
“A Defensoria pode auxiliar a menina, seja por meio de sua inclusão na rede de proteção, seu acompanhamento ou acompanhamento do processo. E, a depender do caso, pode-se avaliar a possibilidade de ação de reparação”, explica Michelle Bitta Alencar de Sousa, titular da 2ª Defensoria Pública Especializada de Atendimento Inicial em Saúde da Capital.
Contudo, a judicialização ocorre apenas quando há negativa do SUS por algum motivo ou por vontade própria da mulher de incluir a figura de uma advogada. A DPE-GO não tem registro de necessidade de intervenção recente nesses casos.
Médico pode se recusar
O abortamento legal deve seguir as diretrizes do Ministério da Saúde, todavia, é necessário que um profissional da Medicina aceite realizar o procedimento. A residente em ginecologia e obstetrícia Bárbara Alves afirma que o primeiro atendimento à menina de Santa Catarina resultou em uma sucessão de erros. Segundo ela, caso um profissional se recuse à prática, é obrigatório que haja uma pessoa ou unidade para transferência da paciente e realização do procedimento. Mas a demora, no caso, colocou em questão o bem-estar da criança no estado sulista.
Para Bárbara, o Hospital Universitário que recebeu a menina “perdeu uma janela de oportunidade de socorrer essa criança, que estava grávida vítima de um estupro, mas de um ponto de vista legal eles não estavam errados de encaminhá-la para a Justiça”. A residente salienta que postergar uma intervenção considerando a viabilidade do feto não pode ocorrer à custa do sofrimento da criança que foi violentada, causando um segundo trauma, após a violência sexual. O que, segundo ela, “estampa” o problema “duplo”.
Além disso, a profissional explica que, por causa da idade da vítima, há “mais risco de ocorrer uma desproporção cefalopélvica e problema hipertensivo natural da primeira gravidez”, ainda que o agravamento da situação é de que tudo é vivido enquanto a criança remete ao trauma da violência sexual.
Impactos podem seguir por toda a vida
“Crianças abusadas, podem se sentir estragadas, incapazes de superar esse acontecimento e perderem a esperança na vida. É importante dizer que o outro é que é perverso e que os adultos prometam proteção, sigilo e disponibilidade para ajudar a reparar o terrível momento”, explica a psicanalista Maysa Balduino.
“Aceitar a complexidade das tragédias, enxergar o outro, se desvencilhar de ideais e ideologias, é a forma mais apropriada de solucionar dilemas como o do aborto”, acrescenta Maysa. A profissional reforça que é fundamental que haja o acompanhamento psicológico em todos os casos de abortamento legal.
A professora de História da Universidade Federal de Goiás (UFG) Tatiana Coelho e a professora de Direito Penal Marcela Iossi acreditam que impedir ou dificultar a prática por questões ideológicas marcará o corpo e a alma da vítima. As acadêmicas reforçam que, após tantas violações, a menina vai viver, provavelmente, sobre a sombra do terror, do medo, marcada como se a suja fosse ela, apontada como quem tirou uma vida e não vista como quem perdeu a sua.
Kamilla Silva, mestra em Direitos Humanos e integrante do Coletivo Rosa Parks da UFG tem o mesmo raciocínio. Segundo ela, os impactos biopsicossociais causados na história de vida e memória de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual são influenciados pela fase do desenvolvimento da vítima. Para ela, a proibição de um aborto legal representa um retrocesso cultural, educacional e legal de como são tratados os diversos corpos femininos na sociedade.
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